Olhou pela janela de sua casa e
viu o espetáculo dos fogos no céu. Era virada de ano. O ano de 1994 dava seu
adeus e 1995 era recebido com festa nas ruas e casas da cidade. A casa de
Antônio era a única da qual não se ouvia barulho algum. Quem passasse por ali
imaginaria que não havia ninguém ali dentro, mas havia sim. Um solitário
adolescente de 16 anos que apesar da insistência dos amigos para acompanhá-los
para a festa na casa de um amigo, resolveu ficar sozinho, vivendo o que
seria o seu primeiro réveillon acompanhado
do desalento.
Uma voz vinda de trás de seu
portão o tirou do transe. Era Fátima que gritava seu nome. Ensaiou sua melhor
cara de indiferença e desprezo e foi atendê-la. “Ah!!! È você, Fátima? O que
quer?” A garota já acostumada com seu
jeito nem aí, respondeu com suavidade. “Deixa de ser bobo. Sai dessa casa e
vamos nos divertir no André. É virada de ano. Você já passou o natal sozinho. Vai passar o ano novo também? Não te
entendo!!!” Antônio olhou por cima dos ombros de Fátima e respondeu, secamente.“Quero
ficar em casa essa noite. Para mim é só mais um dia.” Disse isso e entrou sem
ao menos se despedir da garota que ficou ali parada vendo o portão ser fechado
em sua cara. Uma lágrima quis cair, mas antônio foi cruel consigo e não
permitiu que ela rolasse por seu rosto. Foi até a cozinha, abriu a geladeira e
pegou uma champanhe que sua mãe havia deixado, antes de ir para casa dos
parentes virar o ano com festa e abraços falsos, foi até o quintal, estourou a
champanhe e brindou com as estrelas.
Pensou em Fátima e no interesse estranho que tinha por ela. Era uma menina
mais velha. Já ia fazer 20 anos em abril do novo ano e tinha um namorado de 23.
O André. Dono da casa para onde todos seus amigos iriam. Antônio sentia tesão por Fátima. Tinha o
corpo bem diferente de suas colegas da oitava série. Tinha peitos, pernas
grossas, olhos verdes , um olhar que só
anos depois descobriu conter muita
sacanagem, mas preferia continuar a fingir indiferença. Sentia uma grande tristeza por usar aquela
máscara de desprezo sempre que a encontrava
e que por dentro queimava de desejo. O que ela de fato sentia por um garoto de
16 anos que ainda espremia espinhas? Pena por ser um cara nada popular no
bairro, com manias estranhas e gostos diferentes dos outros garotos de sua
idade? Antonio jamais permitiria que sentissem isso por ele. Antes ser encarado
como um arrogante. Deu mais alguns goles
e permaneceu olhando as estrelas por um tempo indeterminado. Lembrou-se que na sala havia uma ponta
de baseado que um dos amigos que passou
em sua casa deixou para que ele fumasse mais tarde antes de dormir. “Já que vai
ficar em casa, aos menos tenha bons sonhos com isso” Disse o amigo. A ponta
estava sobre um livro na estante próxima a televisão. Acendeu o baseado, ligou
a tv e começou a mudar de canal. Não se acha nada de bom na televisão nesses
dias. Pensou. Quando sintonizou no canal cultura, ouviu uma batida que chamou sua
atenção. Era um especial de Toquinho e Vinicius. Aumentou o volume e aquela
lágrima que não caiu quando fechara o portão na cara de Fátima, caiu acompanhada
de muitas outras e ele pôde sentir o sal em seus lábios. A letra do poetinha na voz de
Toquinho não trazia respostas, mas lhe despertava sentimentos que lhe salvariam
do desalento. Desligou a tv assim que
esse samba acabou e dois versos da letra passaram a se repetir como um mantra
em sua cabeça. Já podia ir dormir. Tinha feito as pazes consigo naquele instante. Aceitaria a
partir daquele dia a tristeza que viesse, pois descobriu nos versos de Vinicius
que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não.”
João Francisco Aguiar é um dos editores do âncora zine e desse blog. É professor, conhecido por seus alunos e colegas de trabalho como jofra, baterista da banda Corvo de Vidro. Não acredita em processos de mudança, e sim na ruptura como mudança do real. Se não está satisfeito com o pano de fundo de sua vida, não mude a si mesmo troque o pano, mude de amigos, de cidade e até de planeta se conseguir. Para ele a imaginação supera a razão.