domingo, 25 de agosto de 2013

Tristezas de uma manhã de domigo

Tinha uma longa caminhada até a rodoviária. Olhei para céu que àquela hora da madrugada era café com leite  e acendi meu último cigarro. Decido passar na conveniência do posto no centro da cidade que certamente estará aberto e comprar cigarros. Comprei dois maços. Seria o suficiente e ainda sobraria um fechado para o dia seguinte. Minhas pernas doíam e resolvi parar e sentar para descansar um pouco no banco de uma praça dois quarteirões depois do posto.
Em um dos bancos próximos ao meu havia um casal que discutia. De repente ouço um barulho e quando me viro  dou de cara com uma cena inusitada. Um rapaz no chão segurava o nariz que sangrava. Tinha tomado um puta soco da companheira que estava sentada a seu lado. Foi aí que percebi no decorrer da cena que o que pensei ser um casal formado por um homem e uma mulher que poderiam ser casados ou namorados era na verdade dois homens. Um travesti e seu cliente que não pagou o programa devidamente e que por isso era esbofeteado. O travesti ao bater gritava para que todos ouvissem. “Comeu e não quer pagar o combinado, cretino!!! FIHO DA PUTAAA...” Na hora cheguei a ter pena do pobre coitado, assisti a tudo sem mover um músculo. Quem passava pela praça também não se importou. Com certeza estavam acostumados com tais acontecimentos que talvez fossem comuns nas madrugadas de domingo.  Alguns transeuntes sequer olhavam para os dois. Outros me cumprimentaram, fizeram comentários do tipo: o combinado saiu caro pra esse, não é mesmo amigo? Tinham também os que só me pediam um cigarro. Para os quais dizia, “toma dois aí, amigo. Tenho bastante aqui.”
Em meio a socos e pontapés, o pobre diabo conseguiu se levantar e fugir cambaleando, entre os poucos carros que passavam, para bem longe do travesti que estava muito enfurecido e continuava xingando. Abriu sua bolsa e tirou de dentro um cachimbo desses artesanais e, sem se importar com as senhoras que naquela hora saiam de suas casas para irem a padaria ou fazer uma caminhada, deu umas quatro ou cinco baforadas. Terminado o show pensei em ir embora, mas o travesti me interpelou dizendo: aí moço, me arruma um cigarro? Disse-me isso com voz feminina e serena. Nem parecia a mesma pessoa que há pouco vi chutar um homem no chão como se fosse um saco de batatas.  Tirei dois cigarros e dei a ele. Acendeu um e guardou o outro. Se virou pra mim e começou sua história. “Me desculpa de ter fumado pedra perto de você, moço. Tinha parado, mas a noite de hoje foi zica pra caralho, sabe?  Acredita que peguei meu homem na cama com outro traveco. Que raiva que deu. A gente sustenta o bofe. Compra droga pra ele  usar. E o mínimo que a gente espera é um pau duro quando a gente precisa e um pouco de respeito. Na minha cama, moço? A cama que a gente dorme? Filho da puta!!! Maconheiro safado!!! Só que isso não vai ficar assim não, moço. Não vai.”
 O que deveria ter feito após ouvir o desabafo era ter ido embora, mas não, dei corda para que ele  continuasse. Perguntei se o namorado era o cara em que bateu há pouco. Sabia que não era, mas precisava saber mais daquela história, talvez fosse para amenizar o tédio.  Peguei outro cigarro e acendi. O travesti tomou fôlego e continuou a contar. “O cara que você me viu batendo era um cliente que combinou um preço comigo e depois queria pagar outro. Um mentiroso. Depois que peguei meu homem com outra, fiquei fodida de raiva, mas não podia matar o desgraçado dentro da pensão onde moro. Quando comecei a morar nessa casa me comprometi com a dona que é muito boa pra mim a não fazer barraco lá dentro. Só olhei bem pra cara dos desgraçados e disse. Se vistam, filhos da puta e podem sumir daqui os dois porque vou atrás de vocês. Vou matar vocês dois. Então se vestiram aos tropeços e sumiram. Nem tentaram se explicar. Sei bem onde encontrar os dois e vou mesmo matar um por um.” Mais uma vez tive a chance de ir embora, mas olhei paro o relógio e tinha perdido o primeiro ônibus para minha cidade. Acendi dois cigarros de uma vez e ofereci um ao traveco que continuou seu relato.  "Procurei meu revólver, mas o desgraçado tinha achado minha arma e tenho certeza que o viciado a trocou na boca por farinha. Foi aí que sai pra fazer um programa e arrumar uma grana pra pegar uma arma na bocada e encher o cu desses dois de chumbo. Encontrei esse playboy que me viu surrando aqui na praça. Queria fazer um programa e me prometeu duzentão. Fomos em um dos moteizinhos  da baixada e na hora de pagar o cretino fez um puta teatro e disse que sua carteira tinha sumido e que tinha caído no chão da praça onde me encontrou.  Vim pra cá com ele para procurar. Aí começou com um papo de que ia passar no banco 24 horas e que se eu quisesse podia esperar sentado no banco da praça mesmo que ia rapidinho tirar o dinheiro e voltar pra me pagar. Foi aí que ganhei o golpe  do malandro.  Ah...moço!!! Sou muito boazinha, mas não me faz de boba, não. Bati mesmo, juntou a raiva da colega que me chifrou com  o meu bofe mais a que ele me fez passar e descontei tudo em cima do  safado. Agora tô aqui, sem dinheiro pra arrumar o cano pra matar os desgraçados que me traíram.” Nisso passam dois caras de moto que mexem com o traveco. O travesti  sinaliza com a mão e os dois param. “Ó moço, preciso arrumar essa grana com esses dois aí. Um aí é cliente antigo e não vai me zuar. Vou ver até se depois do programa me deixa na bocada e me ajuda no serviço. Meu nome é Zoraide, viu? Você foi muito educado em me ouvir. Outro em seu lugar ia era me xingar e não me daria a mínima atenção.” Mais uma vez perdi a chance de ficar quieto e disse que depois de ver o que fez ao carinha não seria nem louco de xingar. Zoraide me olhou com uma cara de quem não gostou da piada, mas tinha mais o que fazer  na vida. Afastou-se de mim e seguiu com um rebolado frenético até os rapazes e sentou na garupa de uma das motos que saiu em velocidade.

Continuei meu caminho até a rodoviária. Eram mais de 08h00. Quando cheguei o ônibus estava deixando a plataforma. Fiz sinal para o motorista  e corri. O motorista que me conhecia, aguardou que eu chegasse e só depois acelerou. No trajeto para casa fiquei pensando em como seria o desfecho da história que ouvi. Será que Zoraide ia mesmo matar a colega travesti e o namorado? A vida durante a noite é bem diferente da vida durante o dia. Os códigos de conduta são outros. A impressão que me dá às vezes é que tudo é permitido. Que para os viajantes da noite  é proibido proibir. E para essas criaturas a tristeza chega sempre acompanhada de um novo dia.




João Francisco Aguiar é um dos editores do âncora zine e desse blog. É professor, conhecido por seus alunos e colegas de trabalho como jofra, baterista da banda Corvo de Vidro. Não acredita em processos de mudança, e sim na ruptura como mudança do real. Se não está satisfeito com o pano de fundo de sua vida, não mude a si mesmo troque o pano, mude de amigos, de cidade e até de planeta se conseguir. Para ele a imaginação supera a razão.

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