Tinha 7 anos de idade quando ouviu, pela primeira vez, a
sentença da tia: "ela é uma selvagenzinha". O motivo? Não conseguia
se comportar como as primas, como princesinhas. E tudo era sempre motivo de
comparações! - elas, as meninas comportadas, sempre com laçarotes na cabeça e
vestidinhos lindos; ela, a selvagenzinha, sempre de shorts, detestava bonecas,
gostava de rolar na grama, mexer na terra, transformar em lobos os vira-latas
da casa e apostar corrida de bicicleta com os amigos. De fato, merecia o
título. Não só merecia, como fez juz a ele. E as primas, as de laçarotes na
cabeça, toda vez que vinham visitá-la, eram "desvirtuadas" pela
selvagenzinha. Porém, jamais sofrera repreensão dos pais por comportar-se dessa
forma; deixaram-na crescer livre.
Achando extremamente tedioso "brincar de casinha",
a selvagenzinha fazia as primas correrem com lobos vira-latas, a confundirem-se
com eles, a andarem descalças, se sujar, brincar de pega-pega,
esconde-esconde... Uma lástima! E princesas? Adoravam os momentos em que podiam
se libertar dos laçarotes, dos vestidinhos bonitinhos, das sufocantes ataduras,
das correntes que as mantinham imóveis; estavam sempre contando os dias para se
verem - as princesas e a selvagenzinha.
O tempo passou. A selvagenzinha cresceu e, logo percebeu,
teria de se adequar as normas que a sociedade impunha, como condição sine qua
non para a boa convivência com os outros. Passou, então, a fingir ser uma
pessoa "normal", uma "alguém", a seguir protocolos, a ter
modos e graça, a comportar-se de maneira a ser levada a sério. Adequou-se à
sociedade; comprimiu-se na máquina; virou um "alguém" que se via na
obrigação de rejeitar a selvagenzinha e tinha de calar sua voz a qualquer
custo.
Só que a selvagenzinha insistia em viver, falar e resmungar.
Travou-se, então, um combate feroz entre a "alguém" e a
selvagenzinha. Digladiavam-se noite e dia. É que a selvagenzinha tinha um
defeito - sempre adorou ler livros e os lia desde os 5 anos. E foi com eles que
aprendeu sobre as diferenças, a intolerância, o que era considerado
"certo" e "errado" mas, sobretudo, aprendeu que existem
vários, diversos, milhares de pontos de vista diferentes dos dela. E que nem
sempre, aqueles que dizem querer o bem de "alguém", realmente o
desejam. Essas constatações a chocaram em um primeiro momento - percebeu como
era estranho, complexo o mundo em que vivia.
A sociedade, com todas as suas regras e normas de conduta,
por exemplo, visa o "bem-comum". E em nome dele [do tal bem-comum], o
bem-individual teria de ser sacrificado. Com grande apreensão, também deu-se
conta de que nem tudo que seria bom para todos, seria bom para ela. Como
resolver isso? Como conseguir enxergar os rostos que se escondiam atrás de
máscaras e representações? Ela ainda não sabia. Por pressão, porém, viu-se
obrigada a assinar o contrato. E foi neste mesmo dia que a "alguém"
saiu-se vitoriosa. Finalmente, conseguira enjaular a selvagenzinha... ou, pelo
menos, achara que sim.
Mais crescida, já cursando História na faculdade, a
"alguém" deparou-se com um grande pensador, chamado Nietzsche. E
neste dia, que foi um dos mais felizes de sua vida, ela deu-se conta de que,
finalmente, havia encontrado alguém que pensava parecido com ela [ou teria sido
com aquela perigosa selvagenzinha?]. Foi amor a primeira vista. Ela queria
tê-lo pedido em casamento. Porém, sabia da impossibilidade, devido ao seu
falecimento, muitos anos antes do nascimento dela própria. Então, a "alguém"
chorou. Chorou muito. Nunca, ninguém, jamais teria a chance de compreendê-la
tão bem quanto ele. E ela sentiu-se só. Muito só.
Outros tantos anos se passaram. Durante este tempo, ela
deixara o "amor de sua vida" meio de lado, de castigo, que era pra
não ficar sofrendo as dores de uma paixão impossível, irrealizável. Na verdade,
fez ainda pior - ela o renegou, desdenhou e passou a afrontá-lo com deuses e
demônios das mais diversas espécies, cores, tonalidades e origens. É que ela tinha consciência de que
se o "ex-amigo" a pudesse ver, sentiria-se magoado, afrontado.
"Ora! Não fora ele um dia a me magoar e me afrontar por estar morto?"
- a "alguém" repetia para si, na tentativa de justificar o
injustificável. A estas alturas, já nem sabia porque se apaixonara por ele -
"aquele alemão tonto e ruim das ideias!". Mas o tempo -ah! o tempo -
e todas as situações pelas quais teria de passar sozinha, em silêncio, um dia,
a faria se reaproximar do renegado, do bigodudo, do alemão tonto e ruim das
ideias.
Batalhas e mais batalhas inglórias depois, finalmente
entendeu o que a levara a ele e o que não compreendera naquele precoce contato.
Acima de tudo, deu-se conta de que muito do que vivera, até aquele exato
momento, não passara de uma [perigosa] farsa. Teve de admitir que a verdadeira
responsável, aquela que facilitara o encontro "gêmeo", havia sido a
selvagenzinha - aquela que rolava na grama, que desvirtuava meninas com
laçarotes na cabeça, que corria com lobos vira-latas, que não aceitava ser
domada, dirigida ou liderada - e, injustamente, fora encarcerada nas masmorras,
de um inconsciente caoticamente organizado, sem ter tido, ao menos, chance de
defesa; deu-se conta de ter sido ela [a selvagenzinha] a dar as mãos ao
bigodudo e a dizer, numa voz infantil - "ensina-me a aprender....".
A "alguém", então, entendeu que poderia tê-lo
sempre junto a ela. O seu amor, recém-(re)descoberto pelo "amigo",
fê-la, sobretudo, entender que não precisava livrar-se daquela insolente
selvagenzinha que, do porão a que fora relegada, clamava por atenção; percebeu
que poderia sublimá-la, (re)direcioná-la, torná-la uma artista que se
expressaria através das letras. E a selvagenzinha sorriu, sorriu feliz, diante
da oportunidade concedida de (res)surgir das cinzas, a que "alguém" a
havia reduzido, e a voltar a correr com lobos.
Miriam Waltrick é formada em História pela UFSC e um curso superior incompleto
em Ciências Econômicas, é jornalista por profissão, escritora por opção e
blogueira nas horas vagas. No final das contas, descobriu que o que deveria ter
feito mesmo era Letras Português (esquizofrenia pouca é bobagem). Jornalista
sem canudo, foi em Londres, onde morou por 4 anos, que surge a oportunidade de
atuar nesta profissão. Passa, então, a escrever para duas revistas - a Real
Magazine e a Brasil Etc.