segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O BAILE DEBUTANTE
Regina Baptista

            Meu irmão e eu estávamos de passagem por aquele lugar e paramos numa hospedagem para passar alguns dias. Logo percebi uma estranheza nas pessoas da casa; não gostei delas mas também não gostei de mim naquilo que até então eu conhecia mas estava sem uso: a suspeita. Como se fosse uma autoridade coloquei aquelas pessoas sob a minha desconfiança, de uma forma tão dura que eu mesma não me suportava.
            O pequeno hotel, que tinha um ar familiar, era dividido em duas alas. Num prédio morava a família de proprietários e também era a hospedagem feminina; o prédio vizinho era reservado aos hóspedes masculinos.  Era portanto um ambiente que queria transmitir uma imagem respeitosa, uma casa de família. Os proprietários, no entanto, desde o princípio não me convenceram com as aparências. Cada pessoa, cada palavra gentil, cada gesto de simpatia me despertava a suspeita de que ali não se estava seguro ou de que tudo isso só existia justamente para camuflar o que não podia ser percebido. Foi então que certa vez tudo começou a se confirmar. A filha mais nova da família, uma jovem prestes a completar quinze anos de idade, estava muito doente. Minhas suspeitas aumentaram porque, sem querer, me tornei vigilante com o caso e isto visivelmente incomodava a família; mas ela não chegava a se irritar, apenas observava com cautela minha interferência e na medida do possível tentava me deter. O pai da moça chegava a ser gentil comigo como se quisesse agradecer pela minha preocupação, mas por razões que eu desconhecia, se recusava a levar a garota ao médico como eu recomendava, e apresentava, para justificar a resistência, as desculpas mais esfarrapadas que encontrava. Algo parecido vinha das mulheres da família: uma velha que devia ser a avó da moça, algumas tias e algumas jovens que eram suas irmãs e primas. Na minha presença todos pareciam cuidadosos com a menina, lamentavam seu estado, aplicavam-lhe tratamentos, sopas, chás, repouso... Mas nada os convencia a chamar um médico, nem as convulsões causadas pela febre, nem a palidez da face. Se por um lado essa negligência me intrigava, por outro, eu me sentia livre do mal estar que antes me corroía quando eu achava que a minha desconfiança tinha origem no meu próprio olhar, no meu próprio interior e não nas coisas que estavam à minha volta. Finalmente aquela necessidade de vigilância que nascera e crescera desde que cheguei à casa, perdia  sua aura de impiedade e me dava o gosto suave da justiça.
            Embora mais leve, eu estava aflita e queria dividir aquela estranha história com meu irmão, mas eu não conseguia me comunicar com ele porque, pelas regras da casa, não eram permitidos contatos entre os hóspedes femininos e masculinos. Isso valia inclusive para irmãos. Assim, eu não podia entrar na ala masculina sob pena de sermos expulsos do hotel.
            Porém, à medida que a doença da garota evoluía e a indiferença daquela gente permanecia, eu me apavorava. Um dia anunciei à família que eu mesma ia chamar um médico. Tomei a liberdade de vasculhar uma agenda de telefones da família e descobrir quem era seu médico de confiança. Talvez a atitude de comunicar minha decisão não tenha sido muito inteligente mas é que eu estava tão habituada a respeitar aquelas pessoas e além disso eu tinha tanta vontade de declarar que elas não estavam conseguindo me enganar, que acabei me delatando. De qualquer forma, mesmo que eu o fizesse em confidência, acabaria me surpreendendo com a notícia que recebi ao falar com o médico. Ele disse que já estava cuidando do caso e que os parentes da paciente já estavam aplicando o tratamento que ele recomendara e que não haveria mais nada a fazer a não ser esperar pelo resultado. Eu encerrei a ligação, enfurecida e envergonhada por suspeitar novamente que a dimensão do problema talvez fosse bem maior do que eu pensava. O medo me rondou mas quando olhei para o estado da enferma, com seus olhos manchados, o rosto suado, criei coragem de enfrentar minha covardia e a própria família do hotel.
            _ Por que não me contaram que já tinham falado com um médico? De alguma forma vocês sabiam sobre mim e minhas intenções. Preveniram-se contra mim, talvez, quem sabe, até fizeram ameaças ao médico para obrigá-lo a me dizer que ele já fez os exames necessários... Enfim, ajeitaram as coisas de modo que eu ficasse sem ação.
            Ditas essas palavras e portanto revelando-me por inteiro perante meus suspeitos e minha protegida, saí da presença de todos, sabendo que me arrependeria por ter sido tão transparente com pessoas que não me temiam. Antes de sair, porém, tive a grata sensação do reconhecimento da enferma que, mesmo no delírio da febre, testemunhou meu empenho em salvá-la e quis me falar. Aproximei-me dela atendendo seu pedido feito com um gesto trêmulo e fraco. Alguém da família ainda me alertou: “não chegue muito perto, pode ser contagioso”. Ignorei o alerta, colei o ouvido à boca da menina para ouvir sua voz fraca:
            _ Fui envenenada! – me disse ela.

            Então chegou o dia do aniversário da garota, que ainda não tinha se restabelecido mas, ao contrário, piorava a cada dia. Mesmo assim os hóspedes decidiram dar uma festa e, para que o som da música não chegasse ao quarto da aniversariante enferma, todos se concentraram na ala masculina do hotel. Era a ocasião, portanto, em que homens e mulheres puderam se misturar e eu aproveitei para procurar meu irmão. Vasculhei cada quarto, cada sala, cada canto do prédio mas não encontrei sequer pistas do que teria acontecido com ele. Da direção do hotel recebi a informação de que ele tinha ido embora. Eu não podia acreditar, claro, mas a estranheza dos acontecimentos me fazia perceber o quanto era perigoso o terreno em que eu pisava e eu achei melhor contrariar meus impulsos pelo menos enquanto não me fosse oferecida uma razão óbvia para acreditar na minha superioridade sobre os que me ameaçavam.
            Já não havia mais ânimo para continuar na festa; todos os participantes me pareciam uma legião de cúmplices de alguma trama medonha. Por todo lado eu só enxergava conspiração, embora não entendesse o fundamento daquilo tudo. Concluí que para chegar a tal fundamento eu teria que passar o resto da vida ali, convivendo com aquela trama até me envolver profundamente e assumir uma posição definitiva nela. Arrasada e com uma sensação de perda para a qual eu já havia me preparado inconscientemente, – pois sabia que estávamos, meu irmão e eu, correndo perigo desde que chegamos – eu só queria chegar até meu quarto onde eu pretendia arrumar as malas e ir embora. Mas no caminho presenciei um pequeno tumulto na sala principal. A adolescente enferma havia recuperado alguma força e decidira sair do repouso. Tinha se maquiado para esconder os sinais da doença e lutava contra os que queriam mantê-la na cama.
            _ A festa é em minha homenagem. – dizia se livrando das mãos que tentavam detê-la. – Eu tenho que estar presente.
            Seu restabelecimento me animou um pouco embora nada sufocasse a infelicidade pelo desaparecimento de meu irmão. Mas logo vi, quando a menina se aproximou de mim, que o que parecia ser uma recuperação não era mais do que a força de um ódio enlouquecedor que agora guiava aquele coração, pois ela própria fez um breve balançar de cabeça em sinal negativo quando forcei um sorriso para cumprimentá-la. Comovida, desisti de arrumar as malas e a segui. Vi quando entrou pela ala masculina, fez uma saudação a todos e depois de caminhar quase sem forças por entre os convidados e hóspedes como se procurasse por alguém, finalmente parou diante de uma de suas parentas. Era uma das mulheres que deviam ser suas tias. Num lapso de segundos a menina se lançou sobre ela:
            _ Assassina! – gritava, enquanto tentava enforcá-la.
            Ao mesmo tempo em que a música foi desligada, todos se concentraram no local da cena. Dois ou três homens agarraram a moça e controlaram sua fúria. A mulher agredida não poupou palavras de insultos contra a sobrinha:
_ Sua menina mimada, mal agradecida! Nós nos preocupamos com a sua saúde, fazemos de tudo pela sua recuperação, até lhe damos uma festa e é assim que você agradece!
Constrangida pelos olhares curiosos dos convidados, a mulher conteve-se e recomendou a retomada do baile.
            A debutante foi deixada sozinha numa poltrona enquanto a música voltava a tocar e as pessoas se dispersavam pelo salão. Cheguei àquela criatura debilitada pela doença e pelo ódio, com a intenção de convencê-la a voltar para o repouso mas ela reagiu:
            _ Não saio desta festa antes que ela acabe ou antes que eu morra.
            _Você parece bem melhor. – tentei encorajá-la. – Talvez viva mais do que a maioria dos que estão dançando agora.
            _ Você é muito otimista. – brincou ela.
            _ Eu não sou otimista. – corrigi. – Apenas tento ver vitórias onde estou colocando minha crença.
            Ela se irritou:
            _ Eu soube que seu irmão desapareceu. Você ainda aposta na minha recuperação?
            _ Vou buscar uma bebida para mim. Você quer alguma coisa?
            _ Uma bebida para mim também.
            _ No seu estado... Vou lhe trazer um suco.
            _ Não. Eu quero vinho.
            E ia negar mas não consegui. Dei-lhe vinho e juntas bebemos o resto da noite. Durante o tempo todo fomos tentadas pelos festeiros que dançavam incansáveis à nossa volta, como se aquele fosse seu último baile. Mas resistimos apesar dos efeitos do vinho. Também resistimos a muitas palavras que teriam que ser gritadas para serem ouvidas. A música estava alta como de propósito, como se nada pudesse ser dito naquela noite. Aos acenos dos convidados a debutante correspondia com sorrisos e olhares de agradecimentos. De vez em quando me falava ao pé do ouvido qualquer coisa relacionada à experiência dos quinze anos.
            _É como acreditar em todas as possibilidades. – me contou. – Todas as imagens do mundo vêm à mente como se fossem feitas só para mim. Nada me assusta.
            Ainda era cedo para eu entender aquilo embora eu tivesse o dobro da idade daquela mestra; ou, com certeza, justamente por eu já ter vivido sua idade sem perceber a morte à espreita. Fui confiscada da minha perfeição e jogada numa ala de aleijados. Fiquei imóvel, muda, o vinho parado na garganta.
            _ Eu pretendo ir embora assim que o baile terminar. – contei-lhe.
            _ As consequências desta noite não vão deixar você se afastar daqui por muito tempo. Você não percebe que está aqui do meu lado, não para me fazer companhia, mas porque você... você é que está sozinha. Mas já foi um bom começo: chegar aqui à ala masculina, sentar-se à mesa com uma virgem bêbada e moribunda! Só me espanta que você não se deixou seduzir por um dos rapazes.
            _ Minha situação aqui é delicada. – expliquei. – Depois do sumiço de meu irmão, não ousarei mais nada; não haverá vinho que me tire desse estado de cautela, por mais que isso me aborreça.
            _ Eu lamento por isso.
            _ Pelo que aconteceu com meu irmão?
            _ Pelo que eu lhe causei. Foi por minha causa que você ficou assim medrosa.
            _ Eu sempre fui medrosa. Mesmo quando enfrentei sua família eu estava insegura e já sabia que sofreria consequências duras demais para mim. Mas ao menos eu vi uma causa e me pus a defendê-la, o que, acho, deveria ser louvável. De que adianta passar o tempo todo acreditando em aparências?
            A debutante desviou o olhar. Disse alguma coisa em voz baixa, ou talvez fosse em tom normal, mas o som da música a sufocou. Eu pedi que repetisse em voz alta. Ela se aproximou de novo do meu ouvido e disse:
            _ Eu pareço saudável?
            _ Parece estar melhor do que dias atrás.
            _ Eu me sinto melhor. – revelou. - Talvez você tenha razão. Talvez eu viva mais do que muitos que estão aqui. 
            Dito isso a menina se levantou, firme e segura, como se nunca estivesse enferma nem bêbada. Passou por uma mesa onde um jovem a aguardava com a mão estendida. Ao se darem as mãos o rapaz se levantou e conduziu a debutante  a um dos quartos do hotel.
            Eu permaneci onde estava até o fim do baile. Só quando todos se foram e os hóspedes se recolheram, foi que me dei conta de que já não havia o que esperar do hotel.


Regina Baptista é escritora e no  dia 21 de outubro vai lançar seu terceiro livro, "Ato penitencial", que faz referência ao mito de Fausto. 



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