quinta-feira, 26 de janeiro de 2012


Texto "Uma Noite"

Lá está ela, banhando seu corpo cansado. Daqui ouço-a espumando as pernas. Vejo a luz amarela do banheiro. O chuveiro silencia. Sinto então o cheiro doce e quente do cigarro que acende depois do banho.Nada como fumar um cigarro com os cabelos molhados, a sensação de que algo fresco está acontecendo. Como uma festa. Tirando o fato de que vamos pouco à rua e que parei de fumar, a vida realmente é uma festa. Eu é que sempre chego ao fim, quando a comida está gelada e a música parou. Ela então demora mais que o habitual. O que estará fazendo? Logo vejo. Volta só de camiseta, com dois copos de conteúdo estranho e os lábios de batom. Pequeno detalhe que meus olhos notam.
_ Já desocupei o banheiro. Pode ir.
_É. Eu percebi quando te vi do meu lado. – Agora sei. Um Martini gelado como só os vencedores podem beber. Só duvido que eles o sorvam com a mesma boca boa que eu.
Termino o copo. Um pequeno beijo segurando seu queixo. Tiro a roupa, ligo o chuveiro. A água vem quente e forte. Lava meu suor, meus músculos, meus pecados. Tudo se mistura formando um líquido negro sugado pelo ralo. Na mente uma sensação de vazio. Fora o dia? Ou o cansaço. Em verdade não chega a ser vazio completamente. Havia várias imagens soltas. Carros. O almoço bom. Alguns papéis. A cidade.
_Pegue a toalha.
_O quê?
_A toalha.
Mais um copo.
_Você quer ouvir música ou assistir TV?
_Tv.
_Como foi seu dia? – eu de uma forma ou de outra sempre acabava perguntando por alguns motivos mais ou menos razoáveis. Para ouvir sua voz. Para saber de algo novo que eu deveria saber. Para que pudesse ser solidário à sua solidão. Para sentir ciúmes.
_Hum... de manhã... – e me narrou aquilo que se repetia todo dia, alisando meu peito. As merdas diárias que qualquer secretária precisa passar.
_Me beija de novo?
Beijo. A boca, as orelhas, a nuca. Beijo os seios. Beijo as coxas, os pés. Beijo o sexo. Deitar-me com ela após um dia ruim, substituir o gosto amargo na boca pelo doce de sua pele. Não sentir a solidão que me ulcera as entranhas. A vida parece ter dado errado em algum momento.
A casa pequena me oprime. Sinto-me humilhado pelos copos feios, alguns lascados. Meus objetos vagabundos, frutos da minha vida trôpega, me lembram a todo momento o que deveria ter sido e nunca fui. Olhá-la cansada, as mãos machucadas, o olhar lento e apaixonado, todas suas tentativas de formar um lar ao meu redor, tudo isso me amarga. Eu poderia ter escalado o mundo e lá de cima ter jogado moedas de ouro para todos os mendigos. Ser um homem, amá-la, ter filhos pelo amor de Deus! Ter um jardim e arrancar algumas flores quando a paixão me tomasse ou simplesmente para lhe lembrar como é impossivelmente linda. Termos malditos copos decentes e celebrar nossa quase finda juventude ao invés de lembrarmo-nos a cada movimento que somos feitos de uma carne densa e dolorida. Quero-me esquecer que trabalhamos como miseráveis e que dificilmente mudarei nossos destinos.
_Tem pernilongos demais! – coçando o joelho branco e pontudo.
_Amanhã compro inseticida. – meus olhos ardendo pela claridade da TV. Pego-a me olhando bem no fundo.
_O que foi?
_Nada meu bem. – mas era. Ela nada havia comentado desde o dia em que disse que havia lhe traído. Apenas este olhar triste. Por que não gritou comigo? Por que não me ofendeu ou foi para cama com qualquer um que adoraria fazê-lo? Por quê tinha que me mostrar que eu havia sido um desprezível e gritado com seu silêncio que eu havia lhe T-R-A-Í-D-O? No entanto, apenas o silêncio e este sofrimento de quem ama.
Tiro a camiseta e sua nudez agarra meus olhos. Como um homem pode se deitar com uma mulher todos os dias há mais de cinco anos e mesmo assim ficar louco por seu corpo é uma dessas coisas que nunca se explicarão realmente para mim. Esquecemos a TV. Esquecemos os copos e nos entregamos à energia do amor, sempre mais do que sexo. Amo-a e o produto de nossos encontros é sempre algo imaterial e disperso que resiste em nossas veias até o próximo dia. Lutamos e vencemos um ao outro. Sempre o exagero quando falamos de nós mesmos, mas poucos conhecerão a força e sinceridade do que é se deitar com uma mulher com a sensação de que não haveria nada melhor debaixo do sol a se fazer do que o que se está fazendo. É uma ilha em meio ao concreto, aos baixos salários, às palavras tortas e às ilusões declinadas. Ela vem com algumas latas de tinta, abre-as sem que eu as note e joga com força sobre a minha vida. Vermelho em meu sexo, roxo em meus olhos, verde nas ruas, azul nos meus sonhos. Vejo-me mergulhado num arco-íris em chamas após um dia cinzento e arenoso. Amar talvez transcenda nossos corpos fugazes e continue mesmo quando estivermos apodrecidos e nossas almas estiverem vagando pelo infinito, lado a lado.
_Eu te perdôo. – ela disse, aceitando-me, e dormiu com o rosto em minha mão. Chorei sem som e adormeci, perdoado.

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Curta biografia:

Ulisses Pinheiro Lampazzi, nascido em 1987, sempre acreditou ser poeta. Formou-se em História pela Unesp em 2009 e atualmente trabalha nesta área, mas continua errando e acertando nos vastos campos do lirismo. Na formação de sua personalidade, misturou Allan Kardec com Jack Kerouac e deu no que deu. Compaixão e vontade de viver a vida como uma fruta aberta. Sejam bem vindos.

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